Tenho algumas dúvidas acerca da utilização de cabeçalhos secundários: ela é bem aceite em Portugal, ou, pelo contrário, é algo que não recomendaria, sobretudo a alguém que está a tentar iniciar a sua actividade neste ramo?
Será melhor optar por outras formas, mais usuais, ou devemos aproveitar as potencialidades desta ferramenta? — Bernie
Bernie, a sua pergunta é muito pertinente. Vamos começar pelo princípio e explicar detalhadamente como é que funcionam os cabeçalhos, antes de entrar nessas nuances mais complicadas.
O que é um cabeçalho
Um guião é organizado por cenas, que se sucedem sequencialmente. Considera-se que há uma nova cena de cada vez que há uma mudança substancial do local ou do tempo onde a acção decorre. Quando isso acontece, e começa uma nova cena, esta é indicada por um CABEÇALHO PRINCIPAL.
Os cabeçalhos principais são geralmente denominados em inglês por SCENE HEADINGS, SLUGLINES, ou, às vezes, SHOT HEADINGS. Quando escrevemos desta forma, separando cada cena com um cabeçalho identificativo,diz-se que estamos a escrever por CENAS MESTRAS.
Em qualquer dos casos estes cabeçalhos obedecem a um formato muito específico. Na norma americana, mais usada internacionalmente, esse formato é como se segue:
- Em primeiro lugar, indica-se se a acção decorre em exterior ou interior.
- De seguida, especifica-se o local onde a acção decorre.
- Em terceiro lugar pode, opcionalmente, indicar-se o tipo de plano de que se trata.
- E, finalmente, indica-se o período do dia ou da noite em que a acção se desenrola.
Todas estas indicações são dadas de uma forma específica, que veremos em detalhe, e escritas em maiúsculas.
Concretizando, estamos a falar de indicações como estas:
EXT. CAMPO DE GIRASSÓIS – PLANO GERAL – DIA
ou
INT. CASA DOS SILVA – SALA COMUM – NOITE
ou ainda
EXT./INT. AUTOESTRADA DO ESTORIL – PORSCHE – ENTARDECER
Interior e exterior
Vejamos então o que cada uma destas indicações quer dizer.
INT. e EXT. (sempre com um ponto final a seguir, nunca dois pontos ou hífen) são fáceis de entender. Indicam-nos apenas se a cena seguinte decorre num local interior ou exterior. Se temos paredes à volta dos personagens, em princípio é interior; se não tivermos, será exterior.
Já EXT./INT. ou INT./EXT. (escritos exatamente desta forma, com os pontos finais e a barra a separar) são indicações menos usadas. Aplicamo-las apenas em situações em que a acção decorre simultaneamente no interior e exterior de algo.
Um exemplo possível é o caso indicado anteriormente, do Porsche na autoestrada. Escreveríamos o cabeçalho da maneira indicada se quiséssemos descrever, numa mesma cena, as interacções entre o carro e os outros veículos na estrada e, em simultâneo, as reacções dos passageiros dentro do Porsche.
Outro exemplo fácil de entender seria uma conversa tripartida entre um homem, na rua; a sua namorada, à janela de uma casa; e a mãe dela, no interior da casa. Numa situação destas poderia ficar muito deselegante e pesado estar a escrever sucessivos cabeçalhos de cada vez que quiséssemos descrever um detalhe de acção que se passasse no interior ou no exterior. Seria então preferível escrever apenas:
EXT./INT. RUA DAS FLORES – CASA DOS SILVA – DIA
O local
O segundo elemento é o local onde a cena se desenrola. Esta descrição pode ter apenas um elemento, ou mais do que um, ligados por hífen. Vejamos alguns exemplos:
PRAÇA DA VILA
ou
PRAÇA DA VILA – CORETO
ou até
PRAÇA DA VILA – CORETO – TELHADO
O conceito é fácil de entender, mas temos de ter alguns cuidados.
Em primeiro lugar, a ordem dos elementos vai sempre do GERAL para o PARTICULAR. Nunca diremos, por exemplo:
TELHADO – PRAÇA DA VILA – CORETO
Em segundo lugar, devemos usar apenas os elementos necessários e suficientes para identificar um determinado local. Não é muito sensato escrever coisas como:
PORTUGAL – LISBOA – RUA DAS FLORES – CASA DOS SILVA – CORREDOR – DISPENSA – DENTRO DE UM BAÚ
Em terceiro lugar, e para simplificar a vida aos múltiplos leitores do guião, devemos tentar uniformizar as designações que usamos para cada local. Por exemplo, é má prática usarmos uma vez a expressão
CASA DOS SILVA
noutras ocasiões referirmos
CASA DE FRANCISCO SILVA
e noutras ainda dizermos
CASA DA FAMÍLIA SILVA
se nos estivermos a referir sempre ao mesmo local. Os assistentes de realização, nomeadamente, agradecem bastante se tivermos este cuidado.
O tipo de plano e o seu sujeito
Por vezes pode ser útil, especialmente em guiões de produção, indicar num cabeçalho um tipo específico de plano. Eu já me referi várias vezes neste blogue há inutilidade de querer fazer realização no guião (é para isso, afinal de contas, que são contratados os realizadores). Além disso, é um pouco redundante indicar num cabeçalho um tipo de plano, sabendo que a cena completa terá eventualmente muitos outros.
Também se vê, por vezes, nos cabeçalhos, a referência a um ou mais personagens que são o sujeito da cena. Aplicam-se a esta prática os mesmos comentários que fiz antes. A maior parte destas indicações, a existir, deverá aparecer nas descrições de acção e não no cabeçalho.
No entanto, admito que pode haver situações especiais em que esta seja a maneira mais elegante de escrever um cabeçalho. Por exemplo:
EXT. CAMPO DE BATALHA – PANORÂMICA – O BATALHÃO – DIA
Eu pessoalmente não escreveria o cabeçalho desta forma, mas o importante é a comunicação entre autor e leitor funcionar. Repito, contudo: estas utilizações devem ser sempre situações excepcionais.
Período do dia ou noite
Em 90% dos casos, bastará escrever DIA ou NOITE. Esta indicação é quanto chega para ajudar na planificação da rodagem do filme, e para dar ao leitor do guião uma boa noção da passagem do tempo.
Se isso for muito importante para a estória, podemos por vezes ser mais específicos e dar indicações como AMANHECER, FIM DO DIA, ou CREPÚSCULO. Recordo um filme, "Ladyhawke", em que os dois protagonistas eram vítimas de uma maldição em que apenas se podiam encontrar nas mudanças do dia para a noite. Nesse guião era com certeza muito importante indicar especificamente estes períodos.
Devemos no entanto perceber que o "amanhecer" e "entardecer", na prática, só acontecem uma vez por dia. Não adianta escrevermos todas as cenas com essa indicação, porque vai ser impossível respeita-la durante a produção do filme, que tem de aproveitar os dias inteiros para filmar.
Outro tipo de indicações que vemos por vezes ser usadas são expressões como MAIS TARDE, DE SEGUIDA ou AO MESMO TEMPO. Estas indicações podem ajudar o leitor do guião a orientar-se melhor na cronologia dos eventos, e como tal ser bastante úteis. Mesmo assim devem ser usadas com parcimónia.
Uma nota especial
Em alguns países europeus, incluindo Portugal, encontram-se muitas vezes guiões em que os cabeçalhos seguem uma ordem de elementos diferente da indicada anteriormente. Nesse formato o período do dia surge imediatamente a seguir ao EXT. ou INT. e antes do local. Por exemplo:
EXT. DIA – CASA DOS SILVA
Tratando-se tudo isto de convenções, esta forma é, obviamente, tão válida como a anterior, e perfeitamente reconhecida por qualquer pessoa que trabalhe no meio. Pessoalmente, prefiro a primeira forma, até porque ela é a que os programas de escrita de guião reconhecem mais facilmente.
A única preocupação deve ser não misturar as duas no mesmo guião. Optando por uma delas devemos mantê-la do início ao fim.
Os cabeçalhos secundários
Esta introdução foi longa mas chegamos finalmente ao cerne da questão: a utilização de CABEÇALHOS SECUNDÁRIOS (ou SLUGS).
Do que se trata, então?
Os cabeçalhos secundários são indicações particulares dadas dentro das cenas mestras, chamando a atenção para detalhes importantes da acção: um local específico; um personagem; um plano ou enquadramento especial; etc.
Surgem destacados, escritos em maiúsculas e ocupando isolados uma linha. Vejamos alguns exemplos:
FRANCISCO
ou
NO CORETO
ou ainda
PONTO DE VISTA DE ISABEL
Em qualquer destes casos consideramos não haver uma mudança de tempo ou local tão substancial que justifique começar uma nova cena, mas há um elemento suficientemente importante na descrição da acção para merecer um destaque especial.
Seguindo esta linha de raciocínio, na altura em que formos numerar as cenas, deveremos numerar apenas os cabeçalhos principais, e não os secundários.
Na prática isto quer dizer que, se usarmos um software de escrita de guião, em que a numeração é automática, devemos escolher a opção de "cabeçalho" (ou "scene heading") apenas para os cabeçalhos principais, usando "acção" ou "plano" ("action" ou "shot") para os secundários. Neste caso devemos ter a preocupação de os escrever em maiúsculas.
Vejamos um exemplo, que tornará mais fácil de entender o conceito:
EXT. PRAIA – DIA
O sol está baixo. Francisco e Isabel estão estendidos nas toalhas, a ler.
RUI (O.S.)
Pai! Mãe! Olhem para mim!
Francisco e Isabel olham em redor, curiosos.
PONTO DE VISTA DE ISABEL
Rui está em cima de uma rocha alta, sorridente, preparando-se para mergulhar para a água transparente da baía.
DE VOLTA À CENA
Isabel sobressalta-se.
ISABEL
Credo! O que é que ele está a fazer?
FRANCISCO
levanta-se de um salto, assustado.
FRANCISCO
Rui – desce daí!
NO ROCHEDO
Rui olha o pai, que avança na sua direcção. Depois volta a olhar para baixo, para a água esverdeada.
FRANCISCO (O.S.)
Não estás a ouvir?
CLOSE UP
Rui fecha os olhos e sorri.
FRANCISCO
começa a correr na direcção da água...
NO ROCHEDO
Rui abre os braços e mergulha; um anjo descendo vertical em direcção ao mar tranquilo.
ISABEL
cobre a boca, abafando um grito.
O exemplo anterior é um pouco exagerado – para a minha maneira de escrever, seguramente – mas pode adequar-se aos estilos e intenções de alguns autores e como tal está perfeitamente correto.
Vantagens e desvantagens dos cabeçalhos secundários
O que é que conseguimos ao usar cabeçalhos secundários?
Em primeiro lugar, chamar a atenção do leitor para detalhes importantes da acção que está a decorrer, dividindo-a em blocos mais facilmente digeríveis.
Em segundo lugar, e em consequência disso, acrescentamos ritmo e dinamismo à descrição de uma cena. Nesse sentido o uso dos cabeçalhos secundários pode ser um recurso muito interessante e poderoso.
Apesar disso evitaria o seu uso indiscriminado ao longo de um guião inteiro. Alguns guionistas aplicam-nos muito bem, como poderão ver no exemplo com que vou terminar este artigo, mas nas mãos erradas podem tornar-se cansativos e perder a eficácia.
O uso intensivo de cabeçalhos secundários tem ainda uma outra desvantagem: consome muito mais espaço.
Os guiões escritos desta maneira, por serem menos densos, ficam normalmente mais compridos. Ou seja, uma determinada quantidade de acção ocupa mais páginas se for escrita assim do que se não usarmos cabeçalhos secundários. Num guião que, em termos de narrativa, já tenha tendência para ser um pouco grande demais, isto pode ser uma desvantagem considerável, que deve ser tomada em conta.
Por fim, gostaria de deixar as ligações para alguns artigos que já escrevi em que são abordados tipos especiais de cabeçalhos:
Montagens e sequências de planos
E, como prometido, aqui fica uma cena escrita por um dos grandes utilizadores dos cabeçalhos secundários, o lendário William Goldman, que escreveu, entre muitos outros, "O homem da maratona", "Os homens do presidente", " Butch Cassidy and the Sundance Kid" e este "Absolut Power".
Boas escritas!
EXT. SULLIVAN MANSION – FRONT DOOR – NIGHT
Thick wood with reinforced steel.
Luther stops by the door, takes off his backpack, opens it. He puts on plastic gloves that have a special layer of padding at the fingertips and palms. Now he takes a key, inserts it in the front door, turns it, and the instant he pushes the door open -- ZOOM TO:
INT. SULLIVAN MANSION – FOYER – NIGHT
The infrared SECURITY DETECTOR -- it immediately starts to BEEP and you can see the seconds being counted down: forty, thirty-nine, thirty --
CUT TO:
LUTHER
-- in his hands now is an automatic screwdriver, no more than six inches long --
-- he sets to work on the security panel that is inside in the foyer next to the front door.
The screwdriver undoes the first screw, the second --
CUT TO:
SECURITY DETECTOR
Thirty-one, thirty, twenty --
CUT TO:
SCREWDRIVER
Now the third and fourth screws are in hands and he lifts the security panel away.
The BEEPING sound is constant --
-- and getting louder.
A tiny device, no bigger than a pocket calculator. It has two wires protruding from it. It is, we are about to find out, a tiny computer. Luther holds it like a baby.
CUT TO:
SECURITY DETECTOR
Eighteen, seventeen --
CUT TO:
LUTHER
probing with the wires into the heart of the security panel.
The BEEPING is LOUDER still.
The security panel. Luther is attempting delicate work and it’s dark so it isn’t easy but he continues to probe with the wires and --
CUT TO:
SECURITY DETECTOR
Eleven, ten --
CUT TO:
LUTHER
and he’s got it attached!
COMPUTER
Now the face of the tiny computer is alive with numbers -- they fly by much too fast for us to make them out clearly.
SECURITY DETECTOR
Four, three, two --
FACE OF TINY COMPUTER
as five numbers lock -- 7 -- 13 -- 19 -- 8
The BEEPING sound dies.
LUTHER
A glance across the foyer -- the lights of detector go from red to a warm looking green.
Safe.
No seu primeiro exemplo não sei se fica muito clara a diferença de POV, sigla que usamos muito = Ponto de Vista. Se personagens interagem dentro de carros diferentes numa estrada, não sei como escrever o cabeçalho: há o POV dos personagens de dentro de um dos carros vendo os outros em outro carro + o diálogo entre eles (aqui entra o POV dos personagens do segundo carro) + os diálogos dentro de cada carro. Aí já não seria outro cabeçalho, já que estamos no interior de cada carro?
Tive que refazer os cabeçalhos de um roteiro porque o produtor e o diretor acharam confuso eu não ter discriminado as cenas que aconteciam entre personagens diferentes em carros diferentes, alternadamente num engarrafamento. Havia um outro personagem que os observava, parado de pé no acostamento da estrada que gritou algo para eles e passou logo à ação.
Eu tinha feito cabeçalhos secundários para dividir tantos POVs mas não adiantou e tive que discriminar tudo, aumentando muito o volume de págs…
No segundo exemplo fazemos parecido, aqui no Brasil mas há uma convenção: somente na primeira vez fazemos o cabeçalho por inteiro, assim: EXT. CASA DOS SILVA – SALA – DIA. Porque na lista de locações, o roteirista já discriminou os lugares das ações e devemos apenas escrevê-las sempre da mesma forma. Depois da 1a vez, daí em diante, não precisamos citar CASA DOS SILVA, está implícito e basta nos referirmos a determinado ambiente: EXT. SALA DOS SILVA – DIA. No exemplo que você deu, logo abaixo do cabeçalho, podemos detalhar: MARIA à janela, conversa com LAURO que está na calçada. Se for este cabeçalho, como é que caracterizo cada POV? Poderia ser também: EXT. RUA DA CASA DOS SILVA – DIA com base em que a ação é determinada por um dos personagens, o Lauro? Se Maria vai apenas responder ao chamado de Lauro é o segundo cabeçalho que prevalesce? E se a mãe da Maria ainda resolve se meter na conversa, rsrsrrs… aí não seria: INT. SALA DOS SILVA – VOZ EM OFF – DIA? Somente Maria a ouve?
Tenho muitas dúvidas porque o que aprendemos não é o que nos pedem na realidade, talvez alguns produtores e diretores tivessem que ler um pouco mais, rsrsrs.. Tenho vários livros dos mestres no métier: Doc Comparato, Robert McKee, Gabriel G. Márques e outros tantos autores, leio e os consulto várias vezes, além de ler vários roteiros clássicos ou não. Mas para essas dúvidas não encontrei respostas diretas ainda…
O terceiro exemplo que você deu, com cabeçalhos secundários, se aproxima mais da minha forma de escrever. Mas mantenho um formato mais compacto sem tantos espaços e somente com os nomes dos personagens em caixa alta, além da sigla POV de LAURO, por exemplo.
No quarto exemplo, em inglês, os nomes dos personagens estão à esquerda em caixa alta, mostrando que não há uma só formato de escrever roteiro. Neste caso, acho que apenas precisamos observar e nos adequar à demanda do mercado. Mas não responde às minhas dúvidas quanto ao como descrever diferentes pontos de vista de personagens que agem na mesma cena, alguns internamente e outros externamente….
Cada caso é um caso, e guionismo não é ciência exata. Mas no caso que refere – dois carros numa autoestrada – se a acção fora dos carros também for importante eu talvez escrevesse assim:
EXT./INT. AUTOESTRADA – CARRO DE RUI – DIA
O trânsito intenso faz os carros parar.
Dentro do carro Rui olha em redor, bla bla bla
INTERCALA COM:
INT. CARRO DE SOFIA – AO MESMO TEMPO
Sofia olha para a confusão à sua volta, nervosa. Fala com os filhos no banco de trás, bla bla …
EXT./INT. AUTOESTRADA – CARRO DE RUI
Rui está nervoso. Abre a porta e sai do carro, para ver o que se passa.
Avança alguns metros e pára ao lado do carro de Sofia. Esta abre a janela, bla bla bla…
E por aí a diante.
Já quanto ao exemplo da cena tripartida entre rua, janela e interior, a forma como eu sugeri escrevê-la é precisamente para prever situações em que não nos limitamos a ouvir a voz da mãe no interior, em (O.S.), mas vemos acções dela – agarra num copo e bebe uma pinga, liga a câmara de vídeo para filmar o namoro, etc. :)
Teríamos assim qualquer coisa como:
EXT./INT. RUA DAS FLORES – SALA DOS SILVA – DIA
Lauro aproxima-se de Maria, que está à janela.
Os dois conversam, bla bla bla.
Dentro da sala, Susete levanta o olhar, curiosa.
Lauro bla bla bla.
Maria bla bla bla
Susete não aguenta mais e levanta-se. Liga a televisão e procura um programa da manhã.
Susete (para Maria) bla bla bla.
Maria bla bla bla e fecha a janela.
Lauro acende um cigarro, resignado, e terminamos.
Imaginando que duas cabeças diferentes pudessem imaginar exatamente a mesma cena, o mais certo é que cada uma delas iria descrevê-la de uma forma diferente no guião. Fazer estas escolhas e opções faz parte da arte do guionista.
Wow! Agora entendí! E hoje poderei finalmente escrever a cena que estou evitando há dias porque não sabia como formatá-la. Nos filmes “Velozes e furiosos” (The fast and the furious) e “Velocidade máxima” (Speed) muitas cenas acontecem de forma simultanea, IN e EXT, com carros nas ruas. Procurei os roteiros para me orientar mas não os encontrei na internet, of course ; )
Uma última pergunta: da forma que você exemplificou na resposta, posso então concluir que o que decide o cabeçalho é o cenário, depois a luz. Mas se o cenário for o mesmo (a estrada, por exemplo) mas a luz for diferente (NOITE, DIA, AMANHECER, etc…) já seria outro cabeçalho (não secundário)? Acho que sim, até porque supõe que o Figurino e Maquiagem precisarão modificar alguma coisa nos atores se for uma corrida de carros que dure 24h, por exemplo. Agora pensando no trabalho da Pré-produção que não podemos ignorar: ao decuparem o roteiro, as cenas externas são as mais complicadas para a Produção por causa da burocracia exigida (licenças, etc…). Mas a luz, a iluminação externa, é determinante para organizarem o Plano de filmagem.
Então… o que determina o cabeçalho da cena para o roteirista é o cenário, desde que a luz não mude?
O meu critério é que se mude de cena mestra de cada vez que há uma mudança significativa de local ou de tempo. Por isso, mesmo que se mantenha o mesmo local e a mesma luz, se tiver havido uma passagem de tempo substancial deve ser feita uma nova cena. Caso contrário não há como dar a entender que houve passagem de tempo. Podemos, no guião, acrescentar algo como MAIS TARDE. Caberá ao realizador encontrar depois uma maneira de dar a entender essa passagem de tempo (se nós não lhe dermos uma ajuda colocando o proverbial relógio na cena ;).
Nesse caso ficará algo como se segue:
EXT./INT. RUA DAS FLORES – SALA DOS SILVA – DIA
Bla bla bla bla.
Lauro acende um cigarro, resignado, e olha em redor.
EXT./INT. RUA DAS FLORES – SALA DOS SILVA – DIA – MAIS TARDE
O pé de Lauro esmaga um cigarro. Já são várias as beatas pisadas no chão.
O homem espera, paciente, encostado à parede. Olha o relógio.
A janela da casa dos Silva abre-se de novo e Maria espreita, curiosa.
Maria blá blá bla, e por aí adiante.
Para o leitor do guião, e espetador do filme, fica claro que houve uma passagem de tempo entre as duas cenas, apesar de ambas terem o mesmo local, luz do dia e personagens.
À produção do filme caberá decidir se as duas cenas são filmadas de seguida, em ordem inversa, ou até em dias diferentes, tendo em conta outros fatores de produção (por exemplo, a utilização de um determinado equipamento, como uma steady cam, ou a presença de outro ator na cena, etc).
O importante para o guionista é escrever respeitando as convenções aceites no seu mercado, de forma a deixar bem claras as suas intenções narrativas.
Obrigado, João!
Devo confessar que aguardava este artigo com mais interesse do que é habitual. Ele responde a tudo o que queria saber, deixando-me, contudo, com uma nova dúvida:
Precisamos de indicar a transição (no caso de Goldman, os “CUT TO:”) sempre que utilizamos um cabeçalho secundario, ou, pelo contrário, podemos omiti-la?
Acho que já sei a resposta, mas aproveito para acabar de vez com as dúvidas.
Obrigado outra vez! Abraço para todos
Não é preciso indicar a transição. A tendência atual é considerar que as transições só devem ser indicadas em situações muito especiais. Especialmente o CUT TO: que é a transição por “default”. O William Goldman tinha essa mania, mas isso fazia parte do seu estilo próprio. Em guiões mais recentes é muito raro encontrar este tipo de escrita.
Posso usar um cabeçalho secundário para indicar passagem de tempo em uma mesma cena?
Por exemplo:
João e Maria andam pela praia deserta em silêncio, observando bem o mar.
MINUTOS DEPOIS…
Os dois estão sentados um do lado do outro; Maria desenha com o dedo na areia, João olha o horizonte, pensativo.
Olá José,
penso que é uma boa utilização de um CABEÇALHO SECUNDÁRIO.